As invenções do agreste em Marcelo Gomes

Carolina de Mendonça
4 min readJan 17, 2020

O sertão do Nordeste foi inventado. Inventado por Graciliano Ramos, Luiz Gonzaga, Glauber Rocha. A arte é importante para nos aproximar de locais e pessoas que somos tão distantes. Para alguém, que como eu, não tem intensa proximidade com o sertão as obras consumidas dão o tom ao imaginário. Talvez sejam inocentes como Isaias (Central do Brasil/Matheus Nachtergaele) ou misteriosos como Acácio/Pacote (Bacurau/Thomás Aquino). O certo é que com quanto mais narrativas mais rico é nosso repertório sobre o lugar tão, tão distante.

Além do que a arte também nos aproxima, com tudo que é de mais particular no olhar de seu artista, é transporto com tudo que é mais universal da alma humana. Para indicar filmes que falam de essência humana e inventam e reinventam o Nordeste em diversas formas escolhi três deliciosas obras do cineasta pernambucano Marcelo Gomes para indicar. Pode ler sem medo, pois não há revelação do enredo e bons filmes!

Cinema, Aspirinas e Urubus (2005)

Protagonistas do longa. Imagem divulgação.

O filme que me instigou a curiosidade pelo título, a sinopse me deixou ainda mais instigada e com isso resolvi assisti-lo. Baseado nas histórias do avô do diretor que conheceu um alemão vendedor de Aspirinas quando deixava a Paraíba. Na ficção Johann é um alemão que fugindo da segunda guerra e o governo totalitário vem para o Brasil. Enquanto trabalha para a Bayer levando propagandas em audiovisual de Aspirinas no sertão nordestino dá caronas a várias figuras.

Ranulpho é uma das figuras que pegam carona com Johann, um nordestino que pretende ir para o Rio de Janeiro, pois acredita que a vida no Sudeste seja melhor. Criticando conterrâneos em situação parecida consigo que também pedem carona a Johann. Alemão e nordestino tem visões antagônicas, o gringo vê uma benevolência e prosperidade, enquanto o nordestino encara como uma população preguiçosa e atrasada.

Os dois jovens tão diferentes se veem conectados por um não-lugar. Não sentindo pertencendo ao local de origem idealizam a vida em um canto diferente. Um road-trip movie no sertão nordestino dos anos 1940 com cinema, remédios e bem… Os urubus descubram no filme.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2009)

Sem vermos o narrador conhecemos seus profundos sentimentos pelo que ele encontra no caminho. Imagem divulgação.

Outro filme que me conquistou pelo título e que talvez seja o meu filme brasileiro favorito de todos os tempos. Nesse outro road-movie, dessa vez com a parceria do Karim Aïnouz na direção, Marcelo Gomes conta a história de um geólogo que está numa viagem pela região semiárida do Nordeste para registrar as condições físicas das localidades por onde um rio será transportado.

Mas o filme não é sobre condições geológicas e sim humanas. A obra inicia com a apatia e cansaço de seu narrador José Renato (Irandhir Santos) que sente uma saudade da porra de sua esposa. Seus sentimentos se misturam com as impressões do local. Vazio, com pouca vida, frágil, porém com esperança.

No início distanciado da população local, José Renato passa a descer mais de seu veículo e dialogar com esses. Se percebe próximo em desejos, inseguranças daquelas pessoas distante geograficamente e economicamente dele. Ao conhecer mais desses indivíduos e se reconhecer neles, o geólogo passa a compreender melhor a si e acolher seus conflitos. Uma belíssima jornada de autoconhecimento e aceitação na belíssima região.

Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar (2019)

Produção em série de jeans em Toritama. Imagem divulgação.

O longa mais recente de Marcelo Gomes é um documentário que também remete as lembranças de infância do autor. Gravado em Toritama — Pernambuco (a capital do jeans) o cinegrafista entrevista moradores da cidade para saber o que mudou nas pessoas do local de quando ele visitava quando criança para o atual “paraíso capitalista”.

As pequenas casas da região se transformaram seus cômodos em pequenas fábricas, sem diferenciação entre público e privado. O discurso neoliberal do fazer seu próprio trabalho não dependendo de um patrão é intrínseco nas falas, porém eles dizem trabalhar mais de 12 horas por dia. Os contrastes são claros, mas não narrados, há uma delicadeza em não inferir sobre a vida daquela população.

O lazer retorna como central na obra de Marcelo Gomes. Em Toritama as pessoas trabalham exaustivamente durante um ano para aproveitarem os dias de carnaval longe das fábricas de jeans. A inocência quase ridícula dos moradores encantados, a simplicidade e força demonstrada nas entrevistas são um deleite cinematográfico, com grande importância social. Um filme imperdível para compreender as pessoas e suas relações de trabalho.

Nesses três longas do mesmo diretor pode se conhecer fragmentos do Nordeste com sinceridade e delicadeza. Diversos entre si, os filmes também contam com temáticas que se repetem, temas que são, mais que tudo, da natureza humana.

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Carolina de Mendonça

Analiso milimetricamente os filmes que vejo enquanto tento combater o clichê que gente de psicologia analisa tudo. Escrevo também na @revistabadaro